domingo, agosto 27, 2017

Cadernos Musicais - Sonata Hammerklavier




Sonata op. 106, Hammerklavier

Romain Rolland, o grande escritor incondicional admirador do génio beethoveniano, não hesita atirar a seus deuses exclamações de júbilo ao longo dos sete livros dedicados ao autor da Hammerklavier. Enaltece sem restrições as inenarráveis três últimas sonatas – op. 109, op. 110 e op. 111. E sabemos que estas abrem caminho ao prodigioso clímax de toda a obra Beethoveniana, aos seus derradeiros quartetos de cordas. Dos quais (vale a pena dizer porque só o génio admira o génio na justa medida) Wagner elege o quarteto que escorre em dó sustenido menor, como o sumos de todo o formidável esplendor criativo do autor da Nona, ao ponto de querer escutá-lo… à hora da Morte !
Ouçamo-lo (a Romain Rolland, obviamente) acerca da op. 106:
Os primeiros esboços do primeiro andamento datam da segunda metade de 1817 (…) A continuação acha-se nos dois cadernos de algibeira (incompletos) de 1818. Na sua quase totalidade foi composta em Mödling naquela mesma Primavera. Beethoven não tinha até aquela data senão um piano Erard, que a própria casa de Paris lhe oferecera em 1803. Já muito cansado. (…). Beethoven transportou um Bradway para Viena, fazendo-se acompanhar dele nas suas nas suas diversas vilegiaturas. Em 1817, diz a Cipriano Potter: “quando estamos a compor [para orquestra] nunca nos devemos manter em recanto onde haja piano para não sermos tentados a pedir-lhe conselho. Só quando a obra se acha concluída é que podemos experimentá-la nesse instrumento à falta de orquestra”.

Mais adiante, o escritor-musicólogo desvenda-nos:
Incrível ! Beethoven, ao compor o primeiro andamento da sonata pensava, deu-se conta que destinara de início os seus motivos principais a um coro a quatro vozes. Em honra do arquiduque Rudolf, destinado-o à festa patronímica deste 17 de Abril de 1818 ! Isto significa que o próprio autor não tinha consciência da monumentalidade da obra pianística que estava a erguer. Tenteou muito tempo ao compor o primeiro andamento, antes de se aperceber do carácter que viriam a assumir os restantes. Através de uma carta ao arquiduque (Janeiro de 1819) sabemos que os dois últimos andamentos, tanto o magnífico Adagio como o grande Fugato final lhe ocorreram como que de surpresa (sind noch gelkomen). Foram-lhe impostas por forças misteriosas do espírito, quando ainda se agarrava à ideia congragulatória inicial.
Novo e surpreendente testemunho, em Beethoven, do poder e da lógica do subconsciente !
(…) O que mais nos surpreende no primeiro andamento da sonata é a sua abundância sinfónica, a qual se traduz pela amplidão da forma, pelas dimensões absolutamente invulgares, muito mais próprias de grande sinfonia que uma sonata. Assim como pelo afluxo das ideias. Sente-se, de uma ponta à outra, uma exaltação de forças que corresponde à efervescência da seiva vital, nestes meses de ressureição - entrando tumultuosamente nas veias de Beethoven. Estamos a imaginá-lo em Möddling, nos dias de estio, atravessando campos e montes. À Natureza do seu Deus ele grita uma força recuperada. Neste hino de renovação, todas as emoções se entretecem: há arroubos de raiva, mágoas, ternura, transportes de amor, torrentes de orgulho e de alegria. Observe-se a quantidade de alterações dinâmicas e de andamento, os fogosos arranques, sopeados e cortados por fogosos ritardandi e suspensões. Os cantabili sucedem-se a rudes acentos de marcha, aos saltos impetuosos, ao labor tenaz daquele fugato que corre ao assalto. Que conquista e constrói entrelaçamentos, de rondas venturosas, entre afirmações triunfais e sacudidas. Há a embriaguês daqueles deliciosos trilos, nos quais, entre dois acordes de torrencial vigor, o coração se embala e adormece. Ah! O soberbo regozijo daquele reempossamento do eu, que é um mundo – aquela plenitude do ser. Que prólogo a uma sonata !


Custa interromper esta sobreposição do génio poético de um enorme escritor francês - traduzido por Lopes Graça, outro maior - relativa ao fogo beethoveniano – que escalda ainda mais (muito mais) quando Romain Roland se debruça (durante 16 páginas!) sobre o adagio [3º andamento) terminando com as palavras Actus Tragicus depois de uma afirmação lapidar, aplicável a todo o Beethoven:
“Lembremo-nos da carta de 15 de Julho de 1817 a Wilhelm Gerhard, de Leipzig, ao tempo em que Beethoven chocava a op. 106".
A música (diz ele) tem seu domínio próprio que se estende a regiões interiores que nem a poesia consegue tão facilmente atingir !

Recomeça, logo a seguir, na mesma linha poética e psicológica, quando proclama a grandiosidade do Largo, o ímpeto final (e infernal) da grande Fuga desta Grosse Sonata für das Hammerklavier op. 106.
São mais 32 páginas na versão da portuguesa Cosmos. Editora empenhada há mais de meio século (saudades! minha juventude…) em traduzir a musicologia (poético/filosófica) desse génio da França (repito o apelo a uma reedição imediata deste monumento). Perdoem-me a confidência (talvez desajustado aqui porque o comentário não é dito do palco): esses sete volumes são meu breviário de cabeceira e de sempre.
Hoje… esgotadíssimo !